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Uma imperturbabilidade Estoica

Roberto Fachetti

Talvez as palavras que utilizei para este título não sejam as mais atrativas para o leitor, mas farei o possível para que o conteúdo do texto o seja.

Acredito que o palavrão de dezoito caracteres do título é, apesar do tamanho, de fácil compreensão. Entretanto, o último termo não é tão comum. Hoje, a palavra “Estoico” é utilizada como adjetivo para pessoas que são, em suma, imperturbáveis. Ok, não adiantou muita coisa. Vou perguntar ao Google qual é a atribuição de significado que ele costuma dar a essa palavra atualmente, no século XXI. Já volto.

Ótimo, o professor Google me deu respostas muito boas. Ele disse que Estoico é “aquele que é rígido, firme em seus princípios” e, também, pode ser classificado Estoico aquele que “se mostra resignado diante do sofrimento e do infortúnio.”

Embora a primeira definição em negrito consiga abraçar e sumarizar um conjunto amplo de características dos praticantes do Estoicismo, esta, isolada, não é suficiente. Já a segunda definição consegue complementar de forma razoável a primeira. Acontece que elas se restringem a alguns dos comportamentos comuns aos filósofos Estoicos que habitaram nosso planeta, cerca de dois mil anos atrás.

Quando a palavra “Estoico” é utilizada como adjetivo, muita coisa valiosa fica para trás. Apesar disso, para a nossa sorte, podemos mergulhar em livros milenares e beber água da fonte. Assim, conseguimos moldar nossos pensamentos e ações para serem verdadeiramente Estoicos.

Voltemos à palavra imperturbabilidade.

Vou contar um caso que aconteceu comigo, bem antes de eu ser capaz de discernir se “Estoicismo” era um braço prático e aplicável da filosofia, ou um ato de pintar vacas na Mongólia.

Meu exemplo é bem mundano mesmo. “Briga” de trânsito. Vocês já vão entender o porquê de o termo estar entre aspas.

Bom, eu havia acabado de concluir mais um dia de consumo passivo e desinteressante de informações na faculdade, e voltava para casa de carro. Eram três pistas na avenida, e eu estava na da esquerda. A pista estava bastante livre, com poucos carros. Ao meu lado direito, e pouco à frente, havia um carro cujo motorista jamais seria capaz de utilizar um chapéu sem furá-lo.

Eu estava em uma velocidade bem superior a daquele ser. Então ele deu seta. Como a pista estava totalmente livre, e eu estava a uma velocidade bem superior, optei por acelerar ainda mais, de forma que ele poderia vir para minha pista facilmente após três segundos. Vale ressaltar que não havia nenhuma entrada à esquerda, estávamos em uma longa avenida.

Bom, o indivíduo não ficou muito feliz com a minha decisão. Na cabeça dele, quando uma pessoa dá seta, isso dá direito a ela de mudar de pista imediatamente, sem olhar ao retrovisor e, ainda, independente da velocidade de quem está atrás.

Então o semáforo ficou vermelho. Eu vi, por meu retrovisor, uma criatura saindo do carro correndo, e fazendo inveja a qualquer animal que tenha algum artifício pontiagudo próximo à cabeça. O indivíduo não causava inveja apenas aos bois e aos touros. Digo que até alguns rinocerontes e elefantes possam ter ficado com inveja daqueles chifres magistrais e imponentes.

Ele veio salivando, com os quatro cascos batendo no asfalto, e murmurando palavras que pareciam rosnados. Fiquei até confuso se tratava-se de um boi, de um touro, ou então de um cachorro. Quando ele chegou perto o suficiente de meu carro, pude ver que definitivamente não era um cachorro, embora os latidos pudessem ter momentaneamente me confundido. Era um boi mesmo, e dos grandes.

Em seguida, me surpreendi outra vez. Entre os murmúrios que saíam da boca do indivíduo, também me lembro de ter ouvido um “EU DEI SETA!!!” (claro, a frase foi seguida de um palavrão que é considerado uma alternativa ao uso de vírgulas, na terra dos cariocas). Antes, eu estava certo que se tratava de um boi, depois de um cachorro e, então, a criatura vocifera uma FRASE? Eu jurava que apenas os seres humanos fossem capazes de falar.

Confesso que, na época, ver o casco de um quadrúpede com óculos escuros batendo no vidro do meu carro me deixou um pouco assustado. Ao mesmo tempo, eu estava na razão. Não tinha feito nada de errado. Sei que a reação mais comum para pessoas que não foram tão sortudas na loteria genética, seria que esse sentimento inicial de espanto rapidamente se transformasse em uma ira incontrolável, digna de um animal. Mas preferi não dar vazão a esse sentimento de catarse. Ainda tive mais certeza que isso não valia a pena quando vi que aquele alce colocou seu casco próximo à sua bermuda. No momento, não tinha certeza se era possível acionar um gatilho com um casco, mas preferi não pagar pra ver.

O fato é que, após alguns segundos de murmúrios dele contra um vidro, consegui identificar no cervo, mesmo que escondido pelos óculos escuros, um sentimento que não pode ser descrito por uma única palavra. Era uma mistura de frustração com desapontamento. À medida que olhava para ele, eu estava ocupado demais tentando identificar qual espécie se tratava, e não conseguia responder aos estímulos dele. Nunca fui muito bom em fazer duas coisas ao mesmo tempo.

O imperador romano Estoico Marco Aurélio, homem mais poderoso da época em que viveu, tem uma frase que se encaixa muito bem a essa situação:

“A melhor vingança é não ser como seu inimigo.”

Embora eu seja incapaz de ser inimigo de animais, a essência da citação pode ser mantida.

Após seu sentimento de ira ter se transformado em frustração e desapontamento, parece ter vindo um terceiro sentimento em sequência. Talvez, a minha reação tenha contribuído para isso. Essa emoção dele também pode ser melhor expressa por uma frase do que por uma única palavra. Seria o sentimento de “o que diabos eu estou fazendo?”.

O semáforo ficou verde. Engatei a primeira marcha. Quero que vocês imaginem a cena. Façam um “zoom-out” gradativo da situação: um búfalo de óculos escuros no meio do trânsito, atrapalhando dezenas de outros condutores que estavam querendo prosseguir e buzinavam todos incessantemente.

Há uma segunda interpretação para as buzinas. Talvez as pessoas estivessem agindo com altruísmo, na tentativa de fazer com que o animal silvestre saísse do meio da avenida. Animais na pista são um perigo.

Pelo meu retrovisor, me diverti ao assistir um quadrúpede voltando para seu automóvel, com todo o cuidado para não furar o teto do carro com os chifres. Já com o carro em movimento, eu tentei aproveitar ao máximo aquele momento. Não é todo dia que temos a oportunidade de ver uma cena rara dessas.

Agora, imagino que tenha ficado mais claro o motivo de eu ter usado aspas na palavra “briga”. Apesar de não conhecer sobre Estoicismo na época, já aplicava alguns de seus ensinamentos. Ao conhecer essa corrente filosófica, me identifiquei bastante, e comecei a tentar entrar na mente dos principais filósofos Estoicos, como Marco Aurélio, Sêneca e Epicteto.

Uma outra vertente crucial do pensamento Estoico é o autocontrole. Ele nos diferencia, enquanto humanos, dos animais. O autocontrole é um tema tão importante, que merece textos exclusivos para ele. Para o caso real e animalesco que eu trouxe nessa narrativa, identifico a necessidade de fazer relações com mais algumas passagens relevantes de Marco Aurélio.

“Você tem poder sobre a sua mente. Não sobre eventos externos. Entenda isso, e você encontrará forças.”

Eu não tinha controle sobre o seguinte fator externo: viria um homem enfurecido em direção ao meu carro querendo comprar briga. Por outro lado, tinha controle sobre a minha mente (e sobre a ação que tomaria a posteriori). É um conselho vindo de um imperador romano que, repito, era o mais poderoso de sua época. Eu escolho seguir.

No tocante ao homem, vejo que ele estava claramente em um sequestro emocional. Ele era incapaz de controlar seus impulsos. Como sugere o escritor libanês Nassim Nicholas Taleb, o Estoicismo não trata de eliminarmos nossas emoções, mas sim domesticá-las. Para isso, inclusive, é interessante conhecer os mecanismos que regem o cérebro, de forma que consigamos passar a adestrá-lo com sabedoria.

Outra reflexão pertinente é relacionada ao sentimento da raiva em si, a mais sedutora das emoções. Sentir raiva faz com que as novas “doses de raiva”, que alimentam o sentimento, sejam muito mais eficazes. Quando nosso corpo se encontra no estado de raiva, a tentação de dar vazão a ela se torna cada vez mais intensa. Nesse sentido, vejamos como um terceiro ensinamento atemporal nos auxilia a evitar essa má decisão:

“As consequências da raiva são muito mais dolorosas do que suas causas.”

Podemos facilmente traçar uma paralelo entre essa citação e o que ocorreu comigo. Caso eu também optasse por liberar a raiva em uma catarse (lembrando que eu estava no meu direito), imaginem o quão desastrosas poderiam ser as consequências.

Isto posto, reitero a relevância de aprender com os ensinamentos Estoicos. O Estoicismo, inclusive, influenciou o Catolicismo e o Budismo. Até hoje ouvimos as palavras de Marco Aurélio, Sêneca e Epicteto ecoando em livros e pensamentos modernos. Além disso, os ensinamentos são práticos e aplicáveis ao nosso dia a dia. Isso que torna o Estoicismo uma filosofia tão apaixonante.

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Publicado originalmente aqui.

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