“Com efeito, senhores, temer a morte é o mesmo que supor-se sábio quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe.”
— Platão, Apologia de Sócrates
É perfeitamente racional temer o que desconhecemos, o que é obscuro ou duvidoso. É por isso temos medo da morte, e eventualmente sofremos diante dessas dúvidas.
No entanto, será que é possível não temer a morte? Acredito que sim. Examinar essas dúvidas é o caminho para isso.
A própria morte
Não é comum (nem saudável) estar diariamente preocupado com quando ou como vamos morrer. É muito mais interessante e razoável apenas viver os momentos sem essa preocupação. Entretanto, inevitavelmente essa inquietação chega.
E com ela, algumas dúvidas.
Quando?
Saber a nossa data limite talvez nos tranquilizasse. Poderíamos nos despedir adequadamente, fazer cerimônias e planejar tudo para este dia. Por outro lado, isso poderia também ser um pesadelo terrível.
Se recebemos a notícia de que vamos morrer daqui 50 anos, aí poderíamos viver bastante tempo sem medo e ainda planejar o tempo que nos resta. Mas e se descobrimos que vamos viver somente mais 1 mês? Não me parece tão interessante.
Estes seriam provavelmente os 30 dias mais angustiantes e agonizantes de minha vida. No meu caso particular, imagino que eu entraria em choque, teria surtos de ansiedade e não conseguiria aproveitar nada de meus últimos dias. Provavelmente eu gastaria todo o meu tempo resolvendo assuntos inacabados com outras pessoas, fazendo as pazes, me despedindo, chorando e sofrendo pela dor dos que me cercam.
Imagino como seria se soubesse que só viveria mais 1 dia…
Ora, pode ser que eu tenha ainda mais 50 anos de vida, talvez só tenha 1 mês, quem sabe 1 dia. O caso é que não tenho como saber, acho que saber que não sei me alivia mais do que o conhecimento desta data.
Há um filme muito interessante que trata especialmente desse tema, chamado O novíssimo testamento (Jaco Van Dormael, 2015).
O filme retrata Deus como um (péssimo) pai de família que tem uma filha adolescente chamada Eva. Eva decide revidar os maus tratos do pai invadindo seu computador (onde ele programava a realidade) e enviando à todos os humanos, via SMS, a data de sua própria morte.
Resultado: O filme trabalha com uma noção de destino predeterminado, então os humanos que descobriram que iam morrer só 20 ou 30 anos depois descobriram-se também imortais até esta data limite. Pessoas se jogavam de prédios e aviões só para por a prova esta previsão, e funcionava: eram sempre salvos por algum acaso. Pacientes terminais que descobriram ter ainda 10 anos de vida levantavam das macas e iam viver o resto de sua vida de um modo mais interessante. Todos agora vivendo sem o medo da morte. Por outro lado, o filme mostra também as pessoas que recebem uma sentença de alguns dias de vida, ou até de poucos segundos. Estas foram as que sofreram mais imediatamente com esse SMS divino.
Eu realmente recomendo esse filme porque, além de ser muito divertido, ele influenciou bastante minha posição sobre esse tema.
Bom, então seria bom saber a data de nossa própria morte? O que posso dizer é que se trata de uma aposta alta. Se a data ainda for longínqua, talvez seja vantajoso saber, se for muito próxima, certamente não.
Particularmente acho que não saber é mais confortável, não corro o risco da aposta e nem tenho que planejar nada. Me basta tentar viver a melhor vida possível, que significa simplesmente estar entre amigos e entes queridos, até quando o destino permitir.
Como?
Outra dúvida que pode nos atormentar é sobre a forma como vamos morrer. É aterrorizante cogitar morrer de modo sofrido, ou morrer por conta de um bobo acaso ou morrer injustamente.
A morte mais temível é talvez a dolorosa, sofrer antes de morrer. Evitar o sofrimento é uma tendência natural, não só humana, animais de modo geral são assim.
Entretanto, por mais trágico que pareça, o sofrimento escapa ao nosso controle. Admitir isso não fará nada melhor ou pior, mas talvez possa nos deixar conscientes e preparados para o que o futuro pode nos ofertar.
Quanto à morte por acaso, me refiro àqueles casos acidentais em que uma piano cai de um prédio e esmaga alguém, ou quando vemos um atleta de incrível porte físico que morre engasgado com um biscoito. Casos trágicos e inesperados.
Quanto a isso talvez a melhor saída seja a simples prudência. Ser precavido, cuidar de si, pode ser um modo acessível de diminuir as chances de tais acidentes. Não é um método perfeito, mas acho que vale a pena.
Sempre olhe para cima ao passar por prédios e mastigue devagar.
E quanto à morrer injustamente? Falo de ser condenado à morte injustamente. É impossível tocar nesse ponto sem lembrar de Sócrates.
Sócrates foi um filósofo do séc. IV a.C que dedicou boa parte de sua vida à Filosofia. O sujeito era conhecido por ser bastante inconveniente, costumava questionar quem quer que cruzasse seu caminho, fosse poeta, artesão ou político.
Sócrates conseguia, através de perguntas (método da maiêutica) mostrar aos demais que sua crença tinha frágil ou nenhum fundamento, o que irritava muitos de seus conterrâneos.
Aos 70 anos de idade Sócrates foi condenado à morte (em 399 a.C), o relato platônico e a interpretação tradicional do caso concordam que a acusação foi injusta. Em sua obra Apologia de Sócrates, Platão apresenta o que teria sido a defesa de seu mestre durante o processo e sua atitude diante da condenação.
O filósofo transborda serenidade, permanece tranquilo e bem humorado mesmo diante da pena capital. Xenofonte, outro discípulo de Sócrates, em sua Apologia relata ainda uma resistência de seu mestre em preparar um discurso de defesa, alegando este que o fato de ter vivido uma vida justa é uma defesa suficiente.
Pode parecer ingenuidade, mas acho que este homem nos oferece um ensinamento valioso.
O cuidado constante com o modo de agir, o autoexame e o cultivo das virtudes o tornou resistente ao medo da morte, mesmo uma morte injusta e orquestrada por políticos corruptos. Eis um bom exemplo a seguir.
Quem sabe o melhor meio de resistir à dúvida de como vou morrer seja me tornar a melhor versão de si mesmo, ser virtuoso.
Busque sempre agir da melhor forma, sempre examine a si mesmo e seja uma pessoa de virtude.
A morte do outro
Nosso primeiro contato com a morte é, provavelmente, através do outro. Presenciar, acompanhar ou ter notícia do falecimento de alguém é algo que pode nos causar fortes inquietações. É possível até que alguém se preocupe mais com a morte de um amigo ou ente querido do que com a própria.
A preocupação
Assim como no caso de nossa própria morte, não sabemos quando e nem como nossos amigos e entes queridos vão morrer. Ainda sim nos interessa a tentativa de postergar o quando ao máximo, de tornar o como algo o menos sofrido possível.
Mas a separação que há entre o eu e o outro torna essa situação difícil.
Quando se trata, por exemplo, de minha saúde ser motivo de preocupação, eu posso melhorar meus hábitos e ser mais saudável. Mas e quando se trata da saúde, da vida, de outro? Nos resta apenas aconselhar, e esperar o melhor.
Quanto a este assunto nossa área de ação é muito restringida ao conselho e ao diálogo. No entanto, acho que coisas grandiosas podem brotar deste pequeno terreno.
O que precisamos ser para aconselhar alguém?
Em primeiro lugar, creio que precisamos ser mais ou menos respeitados no assunto. Ninguém daria ouvidos a um conselho sobre a importância dos estudos vindo de alguém que não dá valor algum aos estudos.
A preocupação com a boa vida de um amigo ou ente querido já pressupõe um cuidado com a nossa própria.
É preciso antes cuidar de si para cuidar do outro.
Em segundo lugar, depois de nos tornarmos respeitados precisamos respeitar. Respeitar no sentido de reconhecer que esta barreira entre nós e o outro é intransponível. Por mais valioso que nosso conselho seja, sempre pode ser recusado.
Um amigo nosso pode querer fumar cigarros até o pulmão apodrecer, a despeito de nossos alertas. Isso pode ser doloroso pra nós, é quando o limite de nossa ação com o outro aparece mais nitidamente. Podemos dialogar com essa pessoa, argumentar, ouvir, mas no final não há saída: a decisão é sempre alheia à nossa vontade.
Ser amigo também significa reconhecer autonomia do outro.
Quando chega o dia
Digamos que é chegado o dia da morte de um amigo ou ente querido, o sofrimento é iminente e avassalador. Não há como escapar de imediato.
O medo da morte de alguém muitas vezes é o medo deste nosso sofrimento. Sabemos que vamos sofrer, não importa o quanto digamos para nós mesmos que a morte é certa e inevitável, que é natural. Há como resistir a isso? Creio que sim.
Pense um momento sobre o assunto, até que ponto essa dor que sentimos não é mesquinha? Se tratar de sofrer por não ter mais aquele abraço, aquela boa conversa e outros prazeres que este amigo lhe proporcionava? Dê um passo atrás, respire e reflita um pouco.
Eu admiro o conselho de um grego que viveu como escravo romano durante boa parte de vida mas que dedicou-se inteiramente à Filosofia, Epicteto.
A Filosofia de Epicteto é dedicada a oferecer um meio para a boa vida. Em sua obra Manual de Epicteto ele nos ensina a lidar com as inquietações que nos afetam durante a vida. Uma delas é a morte de alguém querido.
O filósofo sugere que tenhamos em mente a crença de que esta pessoa que está conosco chegou até nós pela vontade da Natureza (Deus), ela não é nossa. O prazer e o deleite que temos de estar junto a esse amigo ou ente querido não deve nunca ser motivo de dor, mesmo no momento de sua morte.
Devemos ser gratos pela oportunidade que tivemos de passar bons momentos ao lado deste que perdemos.
E quando chegar a hora da Natureza levá-lo, devemos encarar isso mais com gratidão que com tristeza e raiva.
Gratidão não por perder essa doce companhia, mas por termos podido desfrutar dela durante o tempo que passou.
Certamente não é um conselho fácil de digerir, ainda mais quando vivemos numa cultura que vê a morte como o pior dos males. Mas mesmo que não aceitemos a proposta de imediato, acho que cabe alguma consideração sobre.
O provérbio de sabedoria popular que diz “a pessoa que você perdeu não gostaria de te ver sofrendo assim” pode também ser levado em conta.
Após a morte
Outra inquietação que frequentemente nos atinge, ao menos a mim, é a dúvida sobre o que há depois da morte. Posso estar redondamente enganado mas acho que mesmo entre os mais crentes há ainda uma ponta de dúvida sobre o assunto.
A morte é boa ou má? Iremos ao paraíso, ao inferno, iremos a algum lugar? Os meus anos estudando Filosofia na faculdade, conhecendo diversas opiniões sobre o assunto, não ajudaram em nada no quesito tranquilidade.
No entanto, uma posição me chamou a atenção: a que Sócrates defende no tribunal (segundo o relato Platônico). Ele admite que, sinceramente, não sabe o que o espera após a morte.
Passei boa parte da minha vida acreditando que não saber era justamente a raiz de meu sofrimento prévio com relação à morte. Eu precisava saber para onde vou, aí eu poderia ficar tranquilo. Sócrates me mostrou que não é o caso.
“Ninguém sabe o que é a morte, nem se, porventura, será para o homem o maior dos bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males."
— Platão, Apologia de Sócrates
Diante da dúvida, Sócrates cogita: pode ser que seja como diz a tradição, que irei para o Hades onde ficam as almas dos que já se foram; ou pode ser que, como dizem alguns (talvez os “ateus” da época), que não haja nada e que seja o fim definitivo de minha existência.
E em ambos os casos, que mal há?
Se for como defende a tradição grega, ele terá a oportunidade de filosofar não só com os vivos mas agora com os mortos. Encontrará Hércules, Aquiles e outros heróis, e poderá importuná-los também com seus questionamentos!
Se for como dizem alguns, que não há vida após a morte, o que há para temer? Diz ele que aproveitou sua vida entre amigos, investigando, inquirindo todos o tanto que conseguia e desfrutou dos maiores prazeres que a alma poderia conhecer, via Filosofia.
Ter vivido uma boa vida, cultivando amizades e virtudes, é suficiente para que ele não se angustie diante da condenação. Supor saber que a morte é má, diz Sócrates, é um ato de ignorância, assim como supor que é boa. O melhor caminho é saber que não sabe.
Diante disso ele suspende seu juízo, não assere valor positivo ou negativo à morte. Encara a pena capital estando ciente de sua vida justa e de sua honra, isso lhe basta. Bebe o veneno (a cicuta) e deixa este mundo de modo sereno e firme, como relatam os textos antigos.
Como não temer a morte
O que posso dizer que aprendi, principalmente lendo filósofos antigos, é que o melhor caminho para não temer a morte é viver bem. Enxergar o curso da vida como uma preparação, como etapas que precisamos cumprir da melhor e mais justa maneira que pudermos. Uma preparação para o dia de nossa morte.
A cultura clássica nos ensina que aqueles que conhecem a si mesmos, que cultivam verdadeiras amizades e que vivem buscando alcançar a virtude, não tem o que temer.
Talvez a raiz de nosso medo da morte não esteja em dúvidas que cercam o assunto, mas numa preocupação mal direcionada. Não temos como saber se a morte é boa ou ruim (ao menos eu não tenho).
Isso não deve ser razão para sofrer, mas sim um impulso para vivermos da forma mais justa e virtuosa possível, aproveitando o tempo que nos resta, sejam 50 anos, seja 1 único dia.
Cuide de si, cuide dos que te cercam, e não terá o que temer.
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Publicado originalmente aqui.