O Estoicismo foi fundado em Atenas por Zenão de Cítio por volta de 300 a.C. A escola foi incorporada, vivida e disseminada por pessoas diferentes e relevantes em seu tempo. Os ensinamentos do Estoicismo chegaram a nós principalmente pelos escritos de Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio - os filósofos romanos do último período do Estoicismo Antigo.
A filosofia estoica é considerada uma das mais voltadas para ações práticas, não é à toa que há um retorno de seus conceitos, suas ideias e suas práticas por técnicos de esporte, escritores, artistas, pessoas de negócios, enfim, homens e mulheres da atualidade.
O mundo antigo não era um lugar propício para a compreensão de equidade de gênero como entendida atualmente, mas mesmo assim, dentro da filosofia estoica, Zenão imaginou uma comunidade ideal de sábios que incluía mulheres, Musônio Rufo defendeu o estudo da filosofia para as mulheres e Sêneca escreveu obras voltadas para mulheres (consolações/Helvécia e Márcia).
"Embora tenha se desenvolvido em sociedades altamente patriarcais, os escritos estoicos afirmam claramente que as mulheres são moralmente iguais e que merecem ser treinadas em filosofia" - Matthew Van Natta, em The Beginner's Guide to Stoicism: Tools for Emotional Resilience and Positivity
As fontes antigas das quais temos acesso hoje foram todas escritas por homens. Assim, a linguagem é direcionada no masculino; o que não impede pensar e direcionar o estudo do Estoicismo às mulheres, inclusive buscando exemplos e modelos no mundo antigo e contemporâneo. Além dessa questão de gênero, hoje em dia, é importante também escolher uma visão antirracista da filosofia. Se o Estoicismo sempre foi uma filosofia cosmopolita (todos somos iguais e estamos conectados), mais do que nunca, atualmente não há espaço para preconceitos e desigualdades.
Zenão, o fundador do estoicismo, começou sua formação em filosofia estudando por muitos anos com o famoso filósofo cínico Crates de Tebas (360-5 a.C - 280-5 a.C), cuja esposa Hipárquia de Maroneia (350-30 a.C - 280 a.C) foi uma das mais notáveis filósofas da antiguidade.
Hipárquia foi uma filósofa cínica que rejeitou sua alta classe, riqueza e nobreza para viver suas crenças e compartilhar seus valores nas ruas da antiga Atenas juntamente com Crates. Embora tivesse muitos pretendentes, ela disse aos pais que se mataria se não se casasse com ele.
Hipárquia vivia nas ruas de Atenas com seu marido – e mais tarde com seus dois filhos. Eles não possuíam nada além de suas roupas. Eles viviam de fato o que pregavam, uma vida ascética como caminho para a liberdade e a verdadeira interação com a realidade. O exemplo de Hipárquia e Crates, juntamente com o de Sócrates, influenciaram Zenão na criação do Estoicismo.
"Zenão e seus seguidores aparentemente consideravam homens e mulheres iguais e as escolas estoicas eram conhecidas por aceitar estudantes do sexo feminino, em uma época em que isso era incomum" - Donald Robertson, em Stoicism and the Art of Happiness
Assim, podemos perceber que há exemplos de mulheres que viveram a filosofia com a mesma força e comprometimento que os homens, infelizmente não sabemos sobre elas da mesma forma que temos conhecimentos sobre seus pais, maridos e filhos.
É sabido, porém, que o Estoicismo, desde seus primórdios, atraiu muitas mulheres. As mulheres (matronas) organizavam a “convivia” para debater o Estoicismo. Muitas delas de fato vivenciaram a filosofia, como Pórcia Catonis, que era filha de Cato, o Jovem, e esposa de Brutos.
“Roma trouxe outra novidade para a filosofia estoica: o Pórtico agora conclamava as mulheres a estudar filosofia” - Aldo Dinucci, em O Carácter Cosmopolita do Estoicismo
O lema do Estoicismo é “viver de acordo com a natureza”. Mas aqui estamos pensando mais especificamente sobre a natureza humana. E a natureza humana parte de duas premissas: uma que somos seres sociáveis, e a outra que nós somos capazes de pensar racionalmente. Para Emily Mcgill-Rutherford e Scott Aikin, os antigos estoicos pensavam que as mulheres eram iguais aos homens em sua capacidade de raciocinar (e assim também deveriam estudar filosofia) e que mulheres e homens eram cidadãos iguais da cosmópole. Para os autores, o progresso dos antigos estoicos para as mulheres vai porém somente até esse ponto. Não havia a possibilidade de escolha de papéis sociais para as mulheres; faltava, assim, a autonomia.
“Os estoicos, apesar de suas inclinações feministas (ou poderíamos dizer, protofeminismo), não respeitaram a autonomia das mulheres individualmente. Isso, argumentamos, não é inconsistente com seu estoicismo, mas é moralmente inaceitável” - Mcgill-Rutherford e Aikin.
A tese desses autores é de que mesmo não atuando na prática para de fato eliminar os problemas das ações sexistas, a filosofia em si dava possibilidades de pensar o Estoicismo para combater as injustiças. Assim, hoje, mais do que nunca, é possível pensar a filosofia estoica em termos de igualdade de gênero. Pois não queremos uma filosofia estanque, mas uma que avance e se desenvolva.
“O estoicismo liberal que propusemos respeita a autonomia, mas reconhece o fato de que o mundo não é ideal, e assim deve haver as conhecidas virtudes estoicas da resistência (endurance)” - Mcgill-Rutherford e Aikin.
Assim, perseverar não é igual a endossar certos comportamentos – os antigos e os presentes. Para pensar sobre mulheres e Estoicismo, vamos conferir o perfil de três filósofas estoicas da Antiguidade: Pórcia Catonis, Ânica Cornifícia e Fânia.
Pórcia Catonis (70 a.C a 43 ou 42 a.C)
Pórcia (ou Portia) Catonis é filha de Cato, o jovem, e Atília. Ela casou-se primeiramente com Marco Bíbulo e, após ficar viúva, com Marco Júnio Bruto, ou Brutos, um dos assassinos de Júlio César. Cato, o jovem, o pai de Pórcia, lutou pela República e tornou-se um emblema estoico de resistência à tirania e um símbolo da liberdade. Seguindo os passos do pai, Pórcia também é considerada uma filósofa estoica, apesar de pouco citada na história da filosofia.
No livro Lives of the Stoics, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, um dos filósofos destacados é Pórcia. A sua mini biografia traz a importância de se contar as histórias das mulheres, que sempre estiveram presentes, mas são constantemente apagadas. Apesar desse destaque, Pórcia é a única mulher descrita entre as biografias de filósofos estoicos - o que, apesar de ser um avanço ter a sua presença, pode ser considerado um paradoxo. No livro, Holiday e Hanselman escrevem:
“Quase dois séculos antes de Musônio Rufo defender que as mulheres fossem ensinadas filosofia, Pórcia foi apresentada ao Estoicismo ainda criança pelo pai e rapidamente se dedicou a ele.” - Ryan Holiday, em Lives of the Stoics.
O pai de Pórcia, Cato (ou Catão) (95 a.C a 46 a.C), é considerado um dos maiores exemplos do Estoicismo prático. Não são poucas as vezes que os estoicos citam Cato como esse modelo a ser seguido. Essa é inclusive uma das lições estoicas, a de ter modelos virtuosos em mente para nos ajudar a seguir o caminho da sabedoria. Marco Aurélio, no Livro 1 de Meditações, reflete o que aprendeu de várias pessoas de sua vida. Lembramos que o livro é parte de um processo de vivenciar o Estoicismo, em escritas de si – e que se tornou um dos importantes pilares da filosofia estoica até hoje. Assim, crie o hábito de escolher seus modelos, sejam seus amigos, pessoas com quem você convive ou mestres presentes em livros ou momentos históricos. E se você tiver tido a sorte de ter exemplos assim entre familiares ou pessoas próximas, agradeça – e se utilize disso! Sêneca, em uma de suas cartas para Lucílio, afirma:
“Escolha, portanto, um Catão; ou, se Catão lhe parece um modelo muito severo, escolha um Lélio, um espírito mais suave. Escolha um mestre cuja vida, discurso e expressão o tenha satisfeito; imagine-o sempre para si mesmo como seu protetor ou seu exemplo. Pois precisamos ter alguém segundo o qual podemos ajustar nossas características; você nunca pode endireitar o que é torto a menos que você use uma régua”. - Sêneca, na Carta XI, Sobre o rubor da modéstia
Assim, há inclusive um questionamento levado pelos estoicos: "quem é o seu Cato?" Ou "Nem todos podem ser Cato" por que não perguntar: "quem é a sua Pórcia?".
Bíbulo, o primeiro marido de Pórcia, era um aliado do seu pai, Cato, e foi ele quem arranjou o casamento quando Pórcia ainda era uma adolescente, como era costume na época. Assim como os arranjos eram comuns, divórcios e novos casamentos também eram corriqueiros. Cato fazia oposição a Júlio César no Senado. Cato, em 49, a.C declarou guerra - que se tornou a Guerra Civil Romana. Cato e Bíbulo juntaram-se a Pompeu para se opor a César. Em 48 a.C, após a derrota de Pompeu, Bíbulo morreu e Pórcia ficou viúva. Cato cometeu suicídio depois de ser derrotado em batalha em 46 a.C.
Após a morte do primeiro marido, Pórcia casou-se com Brutos, que também tinha lutado contra César. Pórcia e Brutos tiveram um filho, que infelizmente faleceu em 43 a.C.
Quando Pórcia desconfiou dos planos de seu marido Brutos, que não a havia contado, fez um corte profundo em sua coxa para provar a ele e a si mesma que conseguiria aguentar a dor e os problemas que viriam em seguida. A força interior para fazer o corte, a tolerância da dor, a ataraxia em relação à situação fizeram com que Brutos compreendesse as virtudes estoicas presentes em sua mulher e relatou os planos de assassinar o tirano Júlio César. Pórcia, neste episódio, está indo ao extremo de um treino praticado pelos estoicos antigos e contemporâneos: o desconforto voluntário.
A ideia da prática do desconforto voluntário é de que esses exercícios (banhos gelados, restrições de alimentação, dormir em locais desconfortáveis ou usar a mesma roupa por dias) possa nos testar para os reais problemas da vida. Se você é capaz de suportar e de controlar a sua mente nesses exercícios, saberá também acessar esse aprendizado nos momentos de dificuldade, em termos físicos ou emocionais. Cato também era conhecido por essas práticas.
A pintura Portia Wounding Her Thigh (1664), de Elisabetta Sirani, faz referência a essa história. A imagem afirma a força de vontade da filósofa. A pintura é sombria, com cores fortes e traz um certo apelo sexual, com a representação da coxa de Pórcia à mostra. Até hoje, a imagem representa essa força estoica da mulher, mas vale destacar que não é para ser tomada como uma apologia ao autoflagelo, mas ser entendida como metáfora da resistência daquela mulher com um ato que fazia sentido a sua época.
Plutarco, um ensaísta e biógrafo grego que mais tarde se tornou cidadão romano, escreveu sobre Pórcia. Além disso, a filósofa inspirou a construção de personagens na literatura. Shakespeare a coloca nas peças Júlio César e O mercador de Veneza. Nesta última, ele escreveu sobre personagem inspirada na filósofa:
“Em Belmonte há uma jovem que de pouco recebeu grande herança. É muito linda e, mais do que esse termo, de virtudes admiráveis. Outrora eu recebi de seus olhos mensagens inefáveis. Chama-se Pórcia, inferior em nada à filha de Catão, Pórcia de Bruto”.
Não é certa a forma que morreu, alguns afirmam que se suicidou, engolindo brasas ou queimando-as em um quarto fechado, quando soube da morte de Brutos, segundo outras fontes morreu de alguma doença.
Pórcia e Brutos ficaram casados até a morte. Brutos falou sobre Pórcia:
“Embora a fraqueza natural de seu corpo a impeça de fazer o que só a força dos homens poderia realizar, ela tem uma mente tão valente e ativa para o bem de seu país quanto o melhor de nós”, em Who Is Porcia Cato? An Introduction To The Stoic Superwoman
Tomamos conhecimento sobre Pórcia por ser filha de Cato e esposa de Brutos. Quantas outras mulheres ficaram fora dos livros de história e de filosofia por não terem tido um homem para trazer à tona a sua memória?
Ânia Cornifícia Faustina (160 – 212)
Ânia Cornifícia Faustina, a Jovem, é filha do imperador romano Marco Aurélio – um dos grandes nomes do Estoicismo – e da imperatriz Faustina, a Jovem; é irmã de Lucila e do futuro imperador Cômodo.
Quando Cômodo sucedeu seu pai como imperador e, em algum momento entre 190 e 192, ele ordenou a morte do marido de Cornifícia, seu filho, seu cunhado e a família de sua cunhada. Cornifícia sobreviveu às execuções políticas de Cômodo, mas quando ela estava por volta de 50 anos, o imperador tirano Caracala a executou, por suicídio forçado.
Segundo o historiador Dião Cássio, as últimas palavras de Cornifícia revelam a sua ética estoica:
“Minha pobre, infeliz alma, presa num corpo vil, siga adiante, seja livre, mostre-lhes que você é a filha de Marco Aurélio, mesmo que eles compreendam ou não!”
Fânia
Fânia é filha de Árria, a Jovem, e do senador Públio Clódio Trásea Peto. Ela casou com Helvídio Prisco. Trásea liderou a oposição estoica, da qual a filha e o genro também fizeram parte. A oposição estoica foi um movimento político-filosófico de oposição ao governo autocrático de alguns imperadores no século I, principalmente Nero e Domiciano. Em 66 d.C., Trásea, pai de Fânia, é condenado à morte por Nero. Após acompanhar a morte de seu sogro por suicídio, Helvídio foi exilado, partindo com a sua mulher em luto. Fânia por mais uma vez seguiu o marido para o exílio e uma vez foi exilada por instigar a produção de um livro biográfico em homenagem ao seu falecido marido, que havia sido condenado à morte por Vespasiano.
Fânia foi exilada por Domiciano em 93 d.C. por pedir ao estoico Herênio Senecio que escrevesse uma biografia sobre Helvídio. Herênio foi executado. Durante seu julgamento, Fânia foi questionada se ela havia instruído o filósofo a escrever o livro e ela corajosamente confirmou que havia dado os diários de seu marido para ele.
Plínio, o Jovem, em suas cartas escreve que “ela não pronunciou uma única palavra que diminuísse o perigo para si mesma”. Seus pertences foram apreendidos, mas Fânia conseguiu salvar os diários do marido e a biografia dele. Quando ela estava doente e aparentemente morrendo, seu amigo Plínio escreveu sobre ela:
“Quão agradável ela é, quão gentil, quão respeitável e amável ao mesmo tempo – duas qualidades raramente encontradas na mesma pessoa. De fato, ela será uma mulher que mais tarde poderemos mostrar às nossas esposas, de cuja coragem também os homens poderão tirar um exemplo, que agora, enquanto ainda podemos vê-la e ouvi-la, admiramos tanto quanto aquelas mulheres sobre as quais lemos. Para mim, sua própria casa parece cambalear à beira do colapso, abalada em seus alicerces, embora ela deixe descendentes. Quão grandes devem ser suas virtudes e suas realizações para que ela não morra a última de sua linhagem” - Plínio, o Jovem, Cartas 7.19.L, em Lady Stoics #2: Fannia
Referências:
The Beginner's Guide to Stoicism: Tools for Emotional Resilience and Positivity, de Matthew Van Natta
Hipparchia of Maroneia, de Joshua J. Mark
Stoicism and the Art of Happiness, de Donald Robertson
TED: o estoicismo como filosofia para uma vida comum, de Massimo Pigliucci
O Carácter Cosmopolita do Estoicismo, de Aldo Dinucci
Stoicism, feminism and autonomy, de Scott Aikin and Emily McGill-Rutherford
Lady Stoics #1: Porcia Catonis, de Donald Robertson
Mulheres e o Estoicismo: Fânia e Pórcia, de Sabrina Andrade
Lives of the Stoics, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman
Cartas de um Estoico, Volume I, Carta XI, Sobre o rubor da modéstia, de Sêneca
Who Is Porcia Cato? An Introduction To The Stoic Superwoman
O mercador de Veneza, de Shakespeare.
Who Is Porcia Cato? An Introduction To The Stoic Superwoman
Lady stoics #3: annia cornificia faustina minor
Women in stoicism: past & present